Onde começou tudo, onde começou o fim, onde acaba a história começada nos silêncios perturbadores e longos, cada vez mais frequentes, apenas interrompidos e intercalados pela trovoada das palavras, raios e coriscos que arremessámos à vez, um contra o outro, em guerra, num papel falso de argumentação, onde a lógica tenta ser lógica, mas que falha, repetidamente, e que nos revela apenas como meras pedras rolantes e errantes rumo ao abismo, a deslizarmos encosta abaixo, do paraíso para o inferno, ao ritmo da nossa própria desgraça.
Quando é que se cristalizou a ideia que afastados seriamos mais fortes e mais felizes, quem rasgou o contrato da felicidade e dos sonhos? A quem comprámos o plano que nos dizia que a salvação estaria lá fora, longe do que sempre fomos e sonhamos ser.
Onde falhámos? (ou o que falhou)
Não podes mudar o que não existe, nem louvar qualidade a quem não a tem.
As sirenes em correria das ambulâncias e carros de policia ecoavam no horizonte próximo, em avanços, recuos e mudanças de direção bruscas, serpenteando entre as ruas, buzinadelas de "chega para lá", roteiros percetíveis pelas variações do eco do seu grito de alerta, e João, filho da Dona Fátima, estava no quarto deitado, longe desse bulício, ainda afogado no absurdo do absinto, adormecido mas sem conseguir dormir, numa manhã que acordava sem raios de sol, porque o céu nasceu nublado, com um leve filtro de cinzento claro a cobrir toda a paisagem, sem vento, nem frio.
Maria João, separada do mundo por tijolos cimento e azulejos, perdia mais do que os seus habituais 15 minutos - os mínimos olímpicos - a aplicar uma maquilhagem convincente, e com isso, atropelava-se numa correria contra o relógio, entre o quarto e a casa de banho, para num último instante, em 2 atos, enfiar-se dentro de um vestido, e como por magia, ficar pronta, com apenas míseros 7 minutos de atraso (com sorte não apanharia trânsito naquele maldito semáforo),
O Sr. António já passeava na rua e passava os rotineiros olhares românticos e orgulhosos sobre o seu carro semi-novo, foram décadas a levantar-se às 6h30, não seria a reforma a mudar os velhos hábitos, fazia desde cedo a ronda diária à rua, depois de ter ido comprar o pão fresco, o jornal e o maço de tabaco deixou de comprar na papelaria faz perto de 5 anos, substituiu o vicio por raspadinhas, o médico diz que foi o melhor que ele fez, a mulher e os seus cortinados da sala corroboram (as noticias passou a ver no telemóvel e no tablet). O Sr. António sabia qual funcionamento diário de todos os vizinhos do prédio, as movimentações do "quem e a que horas", sabia também a trajetória exata do Sol durante todos os meses e estações do ano, e quais os melhores lugares de estacionamento da rua para proteger a pintura do carro dos maliciosos raios UV.
Um miúdo fazia birra em plena calçada, e demonstrava a plenos pulmões que não queria ir para a escola, "que isso não podia ser todos os dias", e o pai respirava fundo e tentava explicar-lhe, mais uma vez, que os meninos vão para a escola e ele tinha de ir trabalhar, que não havia alternativa, que era assim, e depois suspirava, do fundo da alma, com o peso dos problemas dos adultos em cima dos ombros, e por não querer, igualmente, ir trabalhar.
A meio da manhã, o Sol fintou as previsões meteorológicas e já beijava a face de todos, por entre janelas e vidraças, incluindo o carro do Sr. António.
(João dormia profundamente)
Entre a espada e a parede do sonho de mais um beijo, inequívoco, profundo de amor, e o despertar para o abandono da cama quente em direção a um café da manhã apressado, de chinelos nos pés, a arrastarem-se para a sala, onde começa o dia, onde começa a jornada, em scrolls de ecrã táctil numa dança já bem ensaiada, quotidiana e onde o pijama se transforma em farda e onde não existem barreiras físicas ao que somos e onde estamos. Um jogo, só mais um nível de um jogo, um teatro de cenário único onde tudo começa e finda em nós, onde imaginamos e fazemos acontecer, onde descobrimos o valor insignificante das rotinas do passado, ultrapassadas, mas também a precariedade desumanizada da presente, talvez futura, onde tentamos meter na balança o nosso real valor, e peso, para ou bem e para o mal, onde tentamos ver e descobrir a verdadeira importância das coisas, e onde acabamos por nos afundar, ainda mais fundo, no sofá, atónitos, fetais.
Tudo um caos, tudo adaptação e sobrevivência, tudo organização desorganizada, no fio da navalha, explosões de felicidade extrema e de desalento, desamparo, e depois a bonança, ou o Bonanza, o que seja, qualquer um deles, o que vier com melhor índole, o que estiver a dar na TV, dentro e fora do horário de almoço, entre aspiradores e estendais, relatórios e falhas de sistema, prazos apertados, internos e externos, louça na máquina a lavar, processos por fechar, tudo misturado, puro desatino.
Bem-vindos à Twilight Zone.
Do Verão esperámos sempre o sol, e o calor, do amor a paixão, da vida a felicidade.
Em dúvidas fora-de-horas, o quotidiano lança a semente, a dúvida, a pulga atrás da orelha que nos impele a mexer-nos, a levantar os braços aterrados sobre a mesa, o emergir da cabeça por entre os ombros, o olhar no horizonte, o restart cerebral na forma de bifurcações mentais, pensamentos a percorrer o desconhecido, encruzilhadas, e a eterna pergunta: "será possível?"
A vida é pródiga em exemplos de sucesso e insucesso, de boas e más decisões e da causa-efeito desses atos, onde o arriscar é nublado e incerto: "podes perder tudo", mas onde o deixa-andar amordaçado acaba sempre num suspiro: "isto não é vida".
Arranjamos sempre desculpas para o nosso insucesso, e normalmente culpamos a conjuntura ou terceiros, arranjamos sempre factores externos ao esforço para explicar o sucesso dos outros, e olhamos para o nosso próprio sucesso, numa dicotomia bipolar entre o desacreditado "nem acredito na sorte que tive" ao egocêntrico "o azeite vem sempre ao de cima".
Vivemos assim, não num Submarino amarelo, mas dentro de uma enorme máquina de lavar roupa, num eterno programa da lavagem, onde num rodopio se misturam a incerteza e a tacanhez. A incerteza, do medo de perder tudo, de falhar, perante nós e perante os outros e a tacanhez do conforto de não sair do mesmo sitio, de não arriscarmos, de não saltarmos do balcão do bar - onde nos afundamos e refugiámos em copos meio-cheios - para a pista de dança, para mostrar e arriscar aquilo que somos e almejamos atingir, incluindo, se assim tiver de ser, de cair e de falhar.
felicidade. verdade. amor. paixão. vodka. tequila silver. tequila gold. shots de absinto. praia. campo. lua. sol. guitarras. canções. sofás. colchões. chuveiros. suspiros. gargalhadas. sorrisos.
E auto-estradas sem fim, estradas nacionais secundárias de alcatrão derretido, percorridas de janela aberta, com o vento quente do Verão a soprar nos nossos pescoços, a fazer esvoaçar roupas e cabelos selvagens, de pele bronzeada de outros dias, intensos, óculos de sol a camuflar o brilho do sol, o brilho dos olhos, a minha mão a passar pela tua perna ao meter mais uma mudança, o motor a embalar esta nossa dança serpenteante por entre montanhas e vales, ou em rectas infinitas de planície, paisagens itinerantes pintadas de cinzento e verde, pintadas de cor de deserto, caqui, de horizontes azuis ou vermelhecidos, de restaurantes e cafés, de quartos de hotel, pousadas e albergues, onde chegamos cedo, onde chegamos tarde, de onde apressadamente fugimos para mergulhos em piscinas a aproveitar os últimos raios de sol do dia, desse dia, beijos ao pôr-do-sol, a repetir no próximo - na inevitabilidade do irrepetível - vivendo e aproveitando o presente, num acumular de sapatos e mochilas empoeirados de tanto andar, de roupa de praia ensopada de água do mar, bolsos cheios de areia da praia, de vestígios do crime de ser feliz, perante uma plateia de espectadores desconhecidos.
Tudo o que ficam são flashes, impulsos eléctricos que com o tempo vão deixando cair o sabor, e se transformam apenas numa imagem desfocada, onde nós estamos ao centro, e a que chamamos memórias, a que chamamos, saudade.
Pior que mal-fodido é mal-amado
É preciso ter calma, muita calma e começarmos por aceitar a nossa verdadeira dimensão, o facto de que não passamos de um simples grão de areia encavalitado noutro grão de areia, perdidos algures pelo Universo. Completamente insignificantes, estatisticamente irrelevantes.
Só a partir daí, desse ponto, podemos ambicionar evoluir para qualquer coisa perto do verosímil.
As pessoas não mudam, adaptam-se.
Tanta coisa por dizer, gritar, mas totalmente absorto no que estou a sentir, se por um lado quero a mudança, e quero-a já, por outro sinto-me falso, como se vivesse em negação ou estivesse a mentir. O horizonte é agora só uma fachada, não há planos, os objectivos não existem, são só esboços, pensamentos, papelada avulsa empurrada para dentro de uma gaveta.
Gostava de te ter aqui, hoje, receber-te de braços abertos, ouvir de ti as novidades, mesmo que o resultado final fosse voltar ao abismo.
A taxa de sobrevivência na selva é directamente proporcional à tua capacidade de adaptação
A verdade matemática não explicava nada, os anos das datas de nascimento impressos nos cartões de ambos não coincidiam, embora os meses estivessem caprichosamente perto e a década fosse a mesma. Não existem subterfúgios, a vida e os seus indecifráveis planos e circunstâncias, juntou-os, separou-os e inesperadamente juntou-os de novo, neste caso para unir, num acaso de pormenores e coincidências, pequenos jackpots do jogo da vida. A verdade é que alguém tinha medo de se dar, apenas porque já se tinha dado outras tantas vezes e as mesmas tantas vezes tinha-se dado mal. Alguém já não se queria dar mais - assim - porque a vida é de partilha e não de compromissos de "novela da noite" ou de espartilhos de liberdade.
Alguém jurou que nunca mais se permitiria a ser paquete turístico em escala no mar do amor, na pasmaceira da obrigatoriedade de uma média ponderada (indexada a uma qualquer Euribor de romance) de contactos diários e das recorrentes demonstrações de afecto para internautas & outros verem, e mesmo que a navegar ao sabor da maré, iria certamente afastar-se da correnteza naufragante dos ciúmes e das subsequentes figuras patéticas que por aí assombram.
Alguém aprendeu com alguém que o amor é uma coisa bonita, cheia de ingenuidades e castelos cor-de-rosa, mas não tão perfeito como anunciam, isso, alguém aprendeu com outro alguém. No fim a felicidade não se importa com definições estrangeiras de amor ou paixão.
Alguém reparou que a vida dá-nos sempre, se formos justos, aquilo pedimos e que de certa forma, fazemos por merecer. Alguém aprendeu a assumir e a não julgar os defeitos dos outros, a ser mais tolerante e a não estabelecer nas relações uma garantia vitalícia baseada em coisas que nos ultrapassam, mas apenas porque gostamos de estar com alguém que simplesmente ouve, sente e pensa em sintonia connosco, e que nos aceita, ou tolera, em quase todos os feitios, sobretudo nos péssimos, de manhã ao acordar e ao fim do dia, e que nos fazem sentir melhores pessoas, não apenas por palavras, mas nos pequenos e grandes gestos que nos fazem crescer, abraços e beijos que nos fazem sentir compreendidos, e porque não, amados...
...isso ou apenas mais uma bola de neve a deslizar do cume do Evereste!
YOU CAN'T ALWAYS GET WHAT YOU WANT - "Let It Bleed"
Richards / Jagger
Se te limitares a aprender apenas o que te querem ensinar, nunca vais saber realmente nada.
Quando chegares aos 67, faz log-off.
(e fecha a porta)
Um dia subi contigo a um miradouro escondido, pequeno parque de estacionamento secreto, varanda natural sobre a praia, aí trocámos de corpos, diluímo-nos um no outro, amassados, ofegantes, completos. Nesse dia, sem me aperceber, guardei para a eternidade o teu sabor, o teu toque suave de mãos pequenas e delicadas, o teu perfume, a sensação da leveza do teu corpo no meu quadril. Vivi o sonho, trinquei o desejo, agarrei-me a ti até ao último vestígio na colher, lambida até ao metal, até ao último travo de cigarro, fumado até ao vazio, até à última gota no copo, bebida de um só trago, até cair, redondo, apático, numa overdose de ti.
Estaremos sempre por ali, num lugar secreto entre a maré cheia e a maré vaza
Se passares a vida a fazer apenas aquilo que te pedem, nunca passarás de um escravo.
Lantejoulas cintilantes resplandeciam do teu decote, enquanto tentavas, de forma pouco dissimulada colocar o fio dos headphones por dentro da blusa. Impávido e sereno passeava o reformado, obstinado na tentativa vã de controlar o caos enfadonho em que se tornou a sua existência e corpo, e que internamente já lhe mostrava os sinais de falência. A jovem americana continua sem fazer puto de ideia do que é Portugal, apêndice de Espanha, desvio de rota, voto de must see do tripadvisor, irá comer sardinhas caras, beber cerveja barata e comprar souvenirs de cortiça. A jovem decotada afinal ouve musica moderna, aparentemente o Rock não abalou as novas gerações, tornou-se vintage na sua plenitude, obra, ouvintes e executantes.
Nada contra, haja dinheiro e saúdinha, cá se vai andando, dizem que vem aí bom tempo, quem me dera ter outra vez "vintanos".
Que mais sentiria o coração, na hora da arritmia sentimental, depois do alvoroço e das lágrimas perdidas na calçada, diluídas no lixo calcado de tantas vidas alheias, que diria eu, em próximos jantares de família e amigos, que desabafos ou palavras teria?
Haveriam certamente explicações para dar, frases feitas para ouvir, copos cheios para esvaziar, mas para que lado iria eu dormir, sonâmbulo sem-abrigo, e em que colchão me iria deitar?
Fariam sentido ou serviriam de amparo, as bengalas substitutas ao teu ombro? Vingaria-me nos lugares comuns, manifestações corriqueiras e previsiveis de um choradinho à laia de um "Gloria Gaynor" másculo ou escolheria as espirais silenciosas e apáticas dos processos auto-destrutivos?
Tudo faria sentido, mas nada significaria o mesmo, sem ti.
(Nunca significou)
Foi num estado de completo desespero que Pedro saiu e fechou a porta atrás de si, convicto que seria a última vez a fazê-lo, apoiando-se na teoria apressada da inevitabilidade das coisas. Quem não tivesse o hábito humano de observar faces – e assim reparar que tinha estado a chorar - facilmente apercebia-se, pela sinalética corporal agitada e confusa de quem desce os lances de escadas a galope - de 2 em 2 degraus desde o 5º andar, e cara em forma de seta - que algo não estava bem, e que nesse preciso momento não existia mais nada atrás de si.
Ainda esperou que uma voz o tentasse deter, um: “Pedro espera, por favor, volta para dentro”, que ele obviamente retorquiria com o egocentrismo aliviado de um: “Não Joana, falamos depois”, era esse a táctica de um jogo não planeado, o habitual, mas desta vez nada existiu ao sair disparado pela porta, nem ao descer as escadas, ao fechar a porta do prédio, no trajecto que fez até ao carro, do carro para outro lado, no passar sequencial e vagaroso dos quilómetros, ao meter a chave noutra porta, ao ficar atónito e estarrecido no sofá. Nada. Apenas ouvia dentro de si as vozes de um caos que já estava bem instalado.
Pedro amava Joana, uma banalidade, Joana amava Pedro, algo que ele agora só queria ter novamente por certo.
Nunca apontes uma arma a um gajo que tem as mãos nos bolsos
Do quarto de hotel não se vislumbravam linhas no horizonte, apenas paisagens contrastantes de parques de estacionamento, prédios, esplanadas e montanhas de cume branco, e também a ténue memória de esperança anexa a ti.
As sandes low-cost de razoável valor nutricional saciavam um estômago vazio e a cabeça almejava um pouco mais de liberdade na presença de um saudoso sentimento de voltar a estar em casa.
Fazes-me falta... tanto quantas as vezes que o digo! (sempre)
LIKE A STONE - "Audioslave"
Cornell, Morello, Commerford, B. Wilk
On a cob web afternoon,
In a room full of emptiness
By a freeway I confess
I was lost in the pages of a book full of death;
Reading how we'll die alone.
And if we're good we'll lay to rest,
Anywhere we want to go.
In your house I long to be;
Room by room patiently,
I'll wait for you there like a stone.
I'll wait for you there alone.
And on my deathbed I will pray to the gods and the angels,
Like a pagan to anyone who will take me to heaven;
To a place I recall, I was there so long ago.
The sky was bruised, the wine was bled, and there you led me on.
In your house I long to be;
Room by room, patiently,
I'll wait for you there like a stone.
I'll wait for you there alone, alone.
And on I read until the day was gone;
And I sat in regret of all the things I've done;
For all that I've blessed, and all that I've wronged.
In dreams until my death I will wander on.
In your house I long to be;
Room by room, patiently,
I'll wait for you there like a stone.
I'll wait for you there alone, alone.
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