E um silêncio sepulcral abateu-se sobre o entardecer, num céu de azul cinzento-escuro, em degradé, e as articulações do corpo começaram a doer, como se tivessem sido esticadas, compassadas de espasmos, obrigando a um abraçar do corpo em posição fetal. Os pensamentos corriam livres, puros, atordoados num olhar começando aos poucos a enevoar, como a puxar para o sono, um sono profundo.
Nada era tão compensador nessa altura como a almofada fofa contra a cara e o toque reconfortante dos cobertores. Mas esses estavam longe, demasiado longes, mas quase que se sentiam, de tão habitual e conhecido ser o seu toque. Aos poucos, vindas de longe - em aproximação - começavam a chegar vozes, primeiro curiosas, depois em forma de risos incómodos e sarcásticos.
Conseguiram as pessoas reconhecer o Ser Humano ali deitado por terra, desprotegido, feito de sangue, suor e lágrimas tal qual como eles ? Um homem feito da mesma massa que os seus Deuses e credos apregoam ?
Os tempos eram conturbados, esquisitos, cinzentos... e uma voz sussurrou-me ao ouvido:
- "Apenas tens o que mereces vadio"
Mas será que tinha ?
PERFECT DAY - "Transformer"
Lou Reed
Just a perfect day,
Drink sangria in the park,
And then later, when it gets dark,
We go home
Just a perfect day,
Feed animals in the zoo
Then later, a movie, too,
And then home
Oh its such a perfect day,
Im glad I spent it with you.
Oh such a perfect day,
You just keep me hanging on,
You just keep me hanging on.
Just a perfect day,
Problems all left alone,
Weekenders on our own.
Its such fun
Just a perfect day,
You made me forget myself.
I thought I was someone else,
Someone good
Oh its such a perfect day,
Im glad I spent it with you.
Oh such a perfect day,
You just keep me hanging on,
You just keep me hanging on.
Youre going to reap just what you sow,
Youre going to reap just what you sow,
Youre going to reap just what you sow,
Youre going to reap just what you sow...
(in "Trainspotting")
Só para maiores
Só para homens e mulheres
De barbas feitas ou descuidadas
De pernas bem depiladas
Só para maiores
Por favor...
Só para gente sofrida de anos
Só para gente que conta os segundos
Só para gente que vive o seu mundo
E aspira voar ao fechar os olhos
Só para quem sofre
Só para quem sofre de amar
Só para quem bebe álcool
E consome drogas
Só para quem mete comprimidos
Para conseguir dormir
Conseguir acordar
Conseguir digerir
Só para ti...
Só para mim...
Perdoem-nos se puderem
Ou crucifiquem-nos se quiserem
Já pouco importa
Já nada magoa ou mata
Já nada alegra ou transfigura
Basta! (Acordem)
A vida tornou-se num zero
"...Sempre pensei que com o tempo herdasse mais algo, que merecesse mais, sempre pensei que fosse tudo diferente... mas será?!..."
De tudo se faz uma tempestade, nasce um arrufo. Facilmente se destrói o prazer. Facilmente se aponta o dedo, dificilmente se esquece o amor, a paz, mas facilmente se apanha uma pedra, e atira-se, apenas para ver se quebra... para ouvir o barulho que faz ao estilhaçar a ténue vidraça que envolve o outro... que nos envolve a todos... que nós somos...
Parecemos todos fortes, queremos todos parecer demasiado fortes, demasiado perfeitos, demasiados únicos, quando nos devíamos preocupar apenas em sermos felizes, na partilha dos afectos, entremeados de alguns rasgos de ironia e mau humor, para dar tempero, mas ter como finalidade o prazer dos bons momentos, da cumplicidade, da convivência, custará tanto sermos felizes com pequenos gestos ? Não falo apenas de amor, falo de pessoas, de relações, de minutos, de tempo... falo de magoar e assumir o erro, pedir desculpa (desde que seja de forma sincera, não importa o número de vezes, todos nos erramos)... falo de honestidade... falo de verdade e respeito...
Esticamos sempre um pouco mais, só para ver se sai mais sangue, se sai mais dor das nossas almas, como se o mal que trazemos cá dentro nos saísse do corpo com esses devaneios furiosos contra os outros... mas não sai, só acumula ainda mais, e afasta-nos de quem no fundo mais queremos, de quem mais nós gostamos, como se estivéssemos por vezes sedentos de saber até que ponto podemos contar com eles... mas ninguém, por mais que goste de nós, por mais que nos estime, aguenta festas meigas de mãos cardadas... curiosa gente esta que habita este planeta... curiosa gentalha que nós somos, que sempre seremos (!?)...
Da tristeza se faz palavra
Quando a dor trespassa o peito
Quando sinto que a vida trava
Pára e arranca no meio
Na estrada das horas perdidas
São rectas de sonhos desfeitos
E curvas falsas, fingidas
De ócio, mentiras, receios
Por entre promessas quebradas
De caras que queremos esquecidas
De pessoas que entram e cravam
Punhais em costas já feridas
Da tristeza se faz a vida
Por entre sorrisos abertos
De copos meio-vazios
Manhãs em que não desperto
De dor se enche o abismo
De um corpo não encarquilhado
Um homem que quer ser proscrito
Um corpo semi-enterrado
De tristeza se alimenta a alma
Quando de dor nos alimentamos
Quando transportamos no peito a faca
A faca que em nós próprios espetamos
São 8:32 da manhã, Carlos espera pelo metro na estação dos Restauradores, vai a uma entrevista de emprego, não se encontra nervoso, isso foi há 20 entrevistas atrás. O fato estilo italiano produzido por hábeis mãos chinesas de 12 Primaveras está como novo, marca presença, assenta-lhe bem, e nota-se à légua o brilho de fábrica, bons acabamentos para o preço (“negócio da china” costuma dizer Carlos para fazer conversa, e os amigos riem-se - e Carlos sente-se feliz por ter piada).
Carlos não gosta de usar fato, prefere um estilo mais "moderno" (como ele gosta de chamar), de facto, fora as entrevistas de emprego (que o mereçam) e os casamentos, raramente o usa, "isso é para os doutores" diz ele, como querendo desculpar-se por nunca ter passado do primeiro ano da Faculdade de Economia.
“Gravata? Odeio isso, aperta-me o pescoço, sufoca-me!!", embora tenha sempre duas ou três enroladas na gaveta com mais naftalina lá de casa. Os sapatos também são jeitosos, rácio custo-beneficio menos interessante (a qualidade paga-se), são de uma fábrica do norte, também feitos por hábeis mãos juvenis, Portuguesas desta vez (ver na wikipédia "globalização").
O silvar do metal em fricção que ecoa no túnel anuncia o metro a chegar, alvoroço entre os demais. Carlos tenta ficar para o fim, ainda tem tempo, entra apenas se tiver espaço, não quer amarrotar-se no meio de tanta gente. A corrida está prestes a começar, as pessoas organizam-se como maratonistas a espera do sinal de partida (leia-se "abertura de portas" PIIII!"), empurram-se nas primeiras carruagens, mas mais atrás, 3 ou 4 passadas largas e Carlos consegue entrar confortavelmente, fica de pé junto ao varão.
As pessoas encaixam-se umas nas outras, é hora de ponta, passam 3 estações, o fluxo de gente que entra e sai permanece constante. Sentados ou de pé, vão lendo os diários grátis, ou ouvindo música, absortos no seu compasso, quase todos aparentam estar longe dali, noutro sítio qualquer, provavelmente num onde se culpabilizam de coisas que não dependem deles (talvez). O tempo faz-se de minutos curtos, pré-programados e bem definidos.
Durante a viagem, alguém lhe calca o sapato, duas vezes, a primeira de forma ligeira – uma espécie de roçar incomodativo – a segunda da forma mais asquerosa de todas, na pontinha do sapato, e amolga-lhe a forma, de seguida, o silêncio.
Carlos afasta o pé num reflexo, olha em frente e permanece pacato, silencioso, identifica o agressor: "é apenas mais um burjeço" – pensa – Carlos, magoado no seu ego másculo, tenta-lhe caracterizar um perfil, baseado em estereótipos sociais preconceituosos e pejorativos:
- "Pelo aspecto tosco, bruto, barba por fazer e roupas gastas esta besta só pode ser um iletrado de parco quociente de inteligência, trabalhador não qualificado, quem sabe construção civil ou talvez algo a roçar a vaganbundice. Cheira mal, não apenas a suor, cheira a muitos dias sem tomar banho, cheira a imundice... é um porco nojento que não sabe onde meter os pés"
E prossegue...
- "Devia matar-te como o porco imundo que és, espetar-te uma faca romba no bucho, roda-la, e ver-te a esvair em sangue! És um idiota, devias ter nascido sem pés, apenas com os cotos, queria ver depois quem tu pisavas meu anormal!"
E continua...
"Nem um pedido de desculpas, uma manifestação de incómodo por seres tamanha besta. Por um lado agradeço, se o simples facto de expirares na minha direcção é por si só uma amostra demasiado cruel do cheiro a esgoto que transportas dentro de ti, nem imagino o que dai saía se juntasses também a projecção de palavras. Pior, se tivesse de ter um dialogo contigo… és merda !!"
Respira e...
"Adorava empurrar-te para o carril e ver o metro trucidar-te, sentir o cheiro a porco queimado e ouvir o som dos teus ossos a despedaçarem-se contra o aço!"...
... uma voz pré-gravada e monocórdica interrompe-lhe os pensamentos e anuncia-lhe a sua estação. Fim da viagem. Fura o seu caminho até à porta, e pelo meio pede "com licença" ao burjeço para conseguir sair... "afinal chamo-me Carlos e o Steven Seagal ficou por casa, na estante das cassetes VHS..."
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