- "Porra, acabaram-se os cigarros"
A rua esperava-me, o relógio do vídeo marcava 1:55 da manhã, um cachecol preto apertado à pressa bem preso no fecho corrido do casaco de pele castanho claro - já russo do uso - não fazia "pandan" com as luvas (também pretas) que infelizmente se encontravam perdidas na confusão de algo a que já chamei quarto. A barba por fazer suavizava o frio (pelo menos de forma psicológica) ao sair da porta do prédio, no caminho curto em direcção ao carro.
Tudo estava demasiado frio, o volante, o banco, o próprio motor custava a pegar. Mas pegou, como sempre, e ao vociferar a sua potência senti-me orgulhoso do meu velho e fiel amigo (embora de coração de lata) e também com um ego mais reconfortado (homens e seus carros, ou o prolongamento do próprio pénis - vol.1, 2 e 3).
Meto a marcha-atras, travão, primeira velocidade e a sequência galopante de mudanças até ao Stop. Aquelas horas não é preciso sinal pisca, sigo a marcha. A direcção era conhecida, uma estação de serviço a pouco mais de 4 quilómetros. A chauffage (ou chaufagem) não funciona num percurso tão pequeno, pelo menos neste carro, talvez no regresso o motor já tenha aquecido - resta-nos sempre a esperança.
As ruas estão vazias, um ou outro carro, perdido noutras tantas situações, mas pouco mais, nada de incomum para uma terça-feira a noite. Passo por milhares de pessoas invisíveis, em avenidas ladeadas de prédios, tantas vidas encaixotadas nos seus apartamentos á espera de um novo amanhecer, ou de forças para conseguir dormir, ou de paciência para que o Xanax ou o Rohypnol façam efeito... ou que o whisky não o tenha cortado...muitas janelas ainda assinalam a luz de candeeiros acesos, outras estão na penumbra, preferem talvez, ver televisão ás escuras... ou então já estão mesmo a dormir... nunca sei... não vivo lá... não conheço bem os seus ritos…
Chego à estação de serviço, estaciono de lado, na parte de "água e ar", dirijo-me ao guichet e peço o meu maço de tabaco. O homem da bomba tem um ar estranho, envelhecido para a idade, vê-se à légua que não tem o mínimo prazer naquele trabalho, mas que tem de ser. Já lhe conhecia a cara de outras incursões nocturnas, mas só hoje reparei bem nele, é normal muitas vidas nos passarem ao lado, ignoramo-las por completo, não seria saudável não o fazer, talvez...
Reparo também na lapela, chama-se "João”. Actua mecanicamente, como se estivesse fora daquele lugar - sabe-se lá onde. Uma nota de 5euros na pequena gaveta deslizante, e na volta maço de tabaco, troco e talão, seguido de um "boa noite" mútuo. Estranho homem. Penso no caminho para o carro que daqui a poucos anos é provável deixar de existir aquela profissão... será tudo "self-service"... da gasolina às mortalhas...
Entro no carro, bato o maço de tabaco no volante (sem airbag), 4, 5, 10 vezes, não as conto, confio no instinto para que fiquem "bem batidos". Tiro o invólucro, abro o maço e tiro a prata, não ficaram, parece que a violência resultou em nada (nunca é de facto solução), devo estar a perder qualidades. Cigarro no canto da boca, chave na ignição, primeira velocidade e o mesmo percurso, agora em sentido contrário, de regresso a casa. Apanho o mesmo lugar de estacionamento que deixei, e reparo que já passou o camião do lixo. Apago o cigarro e esvazio o cinzeiro - no chão não no caixote.
Entro no prédio, fecho a porta e ligo a luz da escada, chamo o elevador, antes que chegue, abro a caixa de correio, apenas por abrir, por habito mecânico - como o companheiro João da bomba - e sei bem que esta se encontra vazia, sei bem que o carteiro não passa aquelas horas e que muito menos existem cartas nocturnas... mas nunca se sabe, às vezes a vida tem excepções…
Paulo amava Cristina, e Cristina amava Paulo. Faziam um belo casal, e como todos os casais bonitos, passavam fins-de-semana juntos, loucos, cheios de felicidade. Paulo amava Cristina, e Cristina amava Paulo, e com o passar do tempo começaram a escolher no catalogo do IKEA os sonhos de uma vida a dois: a cor dos sofás, das paredes, os moveis da sala, e Cristina queria tudo novo, e queria os electrodomésticos todos de marca e em inox, e Paulo dizia que sim. Paulo amava e gostava de amar e Cristina gostava muito de ser amada. Paulo amava Cristina, e Cristina amava Paulo, e já contavam pelos dedos quase cheios de uma mão as passagens de ano e férias de verão juntos, julgavam-se eternos, o maior amor do Mundo, o maior amor de sempre..
Paulo amava Cristina, e Cristina amava Paulo, algures no caminho qualquer coisa se perdeu... e acabaram por ficar com algo sem sentido nas mãos, como um isqueiro inútil, com gás mas sem pedra... sem faísca e sem fogo... culpa de um... culpa do outro... culpa dos dois... de nenhum... mas não chegaram a fechar o punho de 5 anos volvidos. Paulo amava Cristina, e Cristina amava Paulo, e descobriram, da pior maneira, que o amor pode ser/é um producto com prazo de validade...
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