São 8:32 da manhã, Carlos espera pelo metro na estação dos Restauradores, vai a uma entrevista de emprego, não se encontra nervoso, isso foi há 20 entrevistas atrás. O fato estilo italiano produzido por hábeis mãos chinesas de 12 Primaveras está como novo, marca presença, assenta-lhe bem, e nota-se à légua o brilho de fábrica, bons acabamentos para o preço (“negócio da china” costuma dizer Carlos para fazer conversa, e os amigos riem-se - e Carlos sente-se feliz por ter piada).
Carlos não gosta de usar fato, prefere um estilo mais "moderno" (como ele gosta de chamar), de facto, fora as entrevistas de emprego (que o mereçam) e os casamentos, raramente o usa, "isso é para os doutores" diz ele, como querendo desculpar-se por nunca ter passado do primeiro ano da Faculdade de Economia.
“Gravata? Odeio isso, aperta-me o pescoço, sufoca-me!!", embora tenha sempre duas ou três enroladas na gaveta com mais naftalina lá de casa. Os sapatos também são jeitosos, rácio custo-beneficio menos interessante (a qualidade paga-se), são de uma fábrica do norte, também feitos por hábeis mãos juvenis, Portuguesas desta vez (ver na wikipédia "globalização").
O silvar do metal em fricção que ecoa no túnel anuncia o metro a chegar, alvoroço entre os demais. Carlos tenta ficar para o fim, ainda tem tempo, entra apenas se tiver espaço, não quer amarrotar-se no meio de tanta gente. A corrida está prestes a começar, as pessoas organizam-se como maratonistas a espera do sinal de partida (leia-se "abertura de portas" PIIII!"), empurram-se nas primeiras carruagens, mas mais atrás, 3 ou 4 passadas largas e Carlos consegue entrar confortavelmente, fica de pé junto ao varão.
As pessoas encaixam-se umas nas outras, é hora de ponta, passam 3 estações, o fluxo de gente que entra e sai permanece constante. Sentados ou de pé, vão lendo os diários grátis, ou ouvindo música, absortos no seu compasso, quase todos aparentam estar longe dali, noutro sítio qualquer, provavelmente num onde se culpabilizam de coisas que não dependem deles (talvez). O tempo faz-se de minutos curtos, pré-programados e bem definidos.
Durante a viagem, alguém lhe calca o sapato, duas vezes, a primeira de forma ligeira – uma espécie de roçar incomodativo – a segunda da forma mais asquerosa de todas, na pontinha do sapato, e amolga-lhe a forma, de seguida, o silêncio.
Carlos afasta o pé num reflexo, olha em frente e permanece pacato, silencioso, identifica o agressor: "é apenas mais um burjeço" – pensa – Carlos, magoado no seu ego másculo, tenta-lhe caracterizar um perfil, baseado em estereótipos sociais preconceituosos e pejorativos:
- "Pelo aspecto tosco, bruto, barba por fazer e roupas gastas esta besta só pode ser um iletrado de parco quociente de inteligência, trabalhador não qualificado, quem sabe construção civil ou talvez algo a roçar a vaganbundice. Cheira mal, não apenas a suor, cheira a muitos dias sem tomar banho, cheira a imundice... é um porco nojento que não sabe onde meter os pés"
E prossegue...
- "Devia matar-te como o porco imundo que és, espetar-te uma faca romba no bucho, roda-la, e ver-te a esvair em sangue! És um idiota, devias ter nascido sem pés, apenas com os cotos, queria ver depois quem tu pisavas meu anormal!"
E continua...
"Nem um pedido de desculpas, uma manifestação de incómodo por seres tamanha besta. Por um lado agradeço, se o simples facto de expirares na minha direcção é por si só uma amostra demasiado cruel do cheiro a esgoto que transportas dentro de ti, nem imagino o que dai saía se juntasses também a projecção de palavras. Pior, se tivesse de ter um dialogo contigo… és merda !!"
Respira e...
"Adorava empurrar-te para o carril e ver o metro trucidar-te, sentir o cheiro a porco queimado e ouvir o som dos teus ossos a despedaçarem-se contra o aço!"...
... uma voz pré-gravada e monocórdica interrompe-lhe os pensamentos e anuncia-lhe a sua estação. Fim da viagem. Fura o seu caminho até à porta, e pelo meio pede "com licença" ao burjeço para conseguir sair... "afinal chamo-me Carlos e o Steven Seagal ficou por casa, na estante das cassetes VHS..."
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